As histórias infantis clássicas muito bonitinhas e com
finais sempre felizes agradam muito os príncipes e princesas que temos em casa.
Mas será que não estão ultrapassadas para a realidade?
Por sua própria condição, a criança vive num mundo de
fantasias e tudo o que é lúdico, fantástico e que caminha na linha da
imaginação é extremamente positivo para seu desenvolvimento e crescimento. Faz
parte da vida da criança sonhar, imaginar, fazer de conta.
Mas é preciso atentar para detalhes importantes destas
histórias da literatura clássica infantil: envolvendo as relações entre as pessoas
em suas diversas dinâmicas, as histórias de contos de fadas trazem estereótipos
que, muitas vezes, conflitam com a vida real.
As princesas são sempre lindas, magras, muitos sofridas. Os
príncipes normalmente chegam a cavalo com seus olhos claros e uma vida de
riqueza. Corações, estrelas, florzinhas, bruxas, dragões, o bem contra o mal. Heróis
e heroínas. O casamento como final feliz. É a ficção estereotipada com sua
visão maniqueísta. Até que ponto esta apresentação de “modelo de convivência” é
saudável?
O psicólogo Ricardo Taveiros Brasil faz uma reflexão mais
profunda sobre o assunto “Modelos problemáticos de identificação estão por toda
parte e as crianças (que hoje são expostas a um modo de socialização direta via
meios de comunicação - o muitas vezes sem a mediação dos adultos) ficam à mercê
daquilo que se lhes apresenta - o que é, sem dúvida, um risco enorme numa
sociedade em que aqueles valores humanistas de alguns contos de fadas se mostram
um tanto anacrônicos, já que o grande barato hoje é se sobressair, ocupar
posições de destaque e de mérito individual, estacionando a criança num
narcisismo que pede superação.”
Para ele, algumas histórias (talvez as mais antigas)
facilitam a ponte “fantasia e realidade”, entretanto as produções
contemporâneas perderam um pouco este fio condutor e apresentam à criança um “mundo cor-de-rosa, onde amo você, você me
ama, somos uma família feliz", pontua Ricardo.
Questionado se estes estereótipos podem prejudicar a criança
quanto ao seu posicionamento no mundo futuramente, o psicólogo responde:
“Acho difícil afirmar, de maneira categórica, que os modelos identificatórios
das histórias e dos personagens necessariamente comprometem o futuro do sujeito
no que diz respeito ao seu posicionamento em relação às escolhas valorativas (o
que não significa dizer que não possam influenciar de alguma forma). (...) se,
eventualmente, o indivíduo estiver inserido num contexto que favoreça uma
resistência à pseudoformação atual e conseguir alguma apropriação subjetiva da
cultura (sinônimo de formação, segundo Theodor Adorno), ele poderá revisitar
criticamente os valores que lhe foram transmitidos, conferindo-lhes outros
significados ou até mesmo superando-os”.
O fato é que a criança se apresenta ao mundo de acordo com o
diálogo que ela aprende. O debate não sugere cercear os pequenos do mundo da
imaginação, mas apenas direcioná-los a conviver com as diferenças. Se o diálogo é feito com base na tolerância,
no respeito às desigualdades, na inteligência como base para posicionamento no
mundo, é bem provável que esta criança se torne um adulto consciente, inserido
no mundo real e desprovido das chagas da vida social (preconceito é uma delas).
Princesas podem ser gordinhas, sardentas, baixinhas, andar
de cadeira de rodas, serem ótimas contadoras de histórias. Príncipes podem ser
carecas, podem ter apenas uma perna, podem morar numa casa modesta, podem ser
dotados das mais diversas habilidades profissionais. A bruxa pode ser uma
mulher apenas atrapalhada e desprovida de maldade. O dragão pode ser bonzinho.
No mundo moderno, seria interessante que os clássicos
apresentassem uma nova roupagem, um diálogo mais condizente com a condição
humana de interagir pelas virtudes, pelas conquistas através do esforço, pela
aceitação de que não existe um único modelo de felicidade. Mas que podemos ser
todos verdadeiramente felizes para sempre com o que temos e com o que podemos
oferecer.
Ricardo Taveiros Brasil é psicólogo e mestrando em Psicologia Escolar e do
Desenvolvimento Humano pelo Instituto de Psicologia da Universidade
de São Paulo. O trecho completo da reflexão dele sobre o tema pode
ser solicitado na seção Comentários deste blog.
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